quarta-feira, julho 21, 2010

Aprendendo com Billy Wilder


Um rei, ao descobrir que é traído, chega à conclusão, depois de saber da traição de sua cunhada, também, que todas as mulheres são traidoras. Por conta disso, ele resolve se casar toda noite com uma mulher e no dia seguinte matar a mesma. Assim, ele vai se casando e matando todas as mulheres do seu reino.

Xarazade, filha do vizir, resolve se casar com o rei, então. Seu pai tenta proibir, pelos motivos óbvios, mas ela consegue, com suas artimanhas, chegar ao leito nupcial. Pede, no entanto, que sua jovem irmã se deite com ela. Previamente combinado, antes de dormir sua irmãzinha pede que Xarazade conte uma história. Ela começa a história, só que o dia raia. O rei, curioso pelo final, decide deixá-la viva por mais um dia para que termine a história.

Só que as histórias de Xarazade nunca terminam. Sempre, ao amanhecer, a história está no meio, e uma vai se emendando na outra. O rei vai protelando a morte dela, para ouvir as histórias, por mil e uma noites.

Assim é a obra de arte, o teatro, o cinema, a dramaturgia. É a arte de contar uma história que prenda a atenção do espectador, com momentos de tensão que o levem à curiosidade do outro dia; até que se complete o ciclo. A pena por não prender a atenção; a morte. A palavra morre. A arte morre.

Assisti ao filme Testemunha de acusação, de Billy Wilder, ontem à noite. Esse austro-polonês, fugido da guerra, migrou para os EUA, deixando pra trás o nazismo e a morte de sua família em campos de concentração. E se tornou um de seus maiores cineastas. Um gênio das pequenas obras.

É público e notório meu descontentamento com o cinema americano. Bem como com Molière, com as comédias de costume. As fórmulas. Tudo isso aí se baseia em fórmulas e artifícios, me irritam e me dão um desprazer profundo. Mas tudo bem-feito tem efeito. Tudo bem-dito é bendito.

Assim são os filmes de Wilder. Se meu apartamento falasse e Quanto mais quente melhor já haviam sido suficientes pra eu me tornar um fã desse diretor que deixava pendurado em seu escritório "How would Lubitsch do it?", numa referência ao diretor alemão, seu mestre.

No entanto, ao ver Testemunha de acusação, pude perceber mais claramente a maestria com que Wilder conduz os atores e os diálogos. Ciente de que depois da tragédia não se pode escrever mais sem humor, vemos, num filme de tribunal, diálogos espirituosos e bem-feitos, com atores precisos, sacadas de roteiro, e a tão desejada leveza que Calvino nos dizia em suas seis (que são cinco) propostas para esse nosso milênio.

Geralmente, as pessoas querem imitar os grandes gênios, querem ter como referência direta algum ídolo que tem maneiras muito próprias de criar. Vai-se a referências radicais, de um Heiner Müller a um Tarkovsky, de um Samuel Beckett a um Greenaway. No entanto, temos que ter muito cuidado para, na tentativa de inspirarmo-nos em certos autores, não acabarmos sendo um mero pastiche, uma caricatura de uma linguagem muito pessoal e intransferível na criação artística.

Billy Wilder consegue estar aquém das grandes referências que tenho no cinema. Não entra, em hipótese alguma, nos meus “dez mais”. Mas sua importância para o aprendizado da arte talvez seja das maiores. Excelente carpinteiro, ele conseguiu fazer filmes perfeitos, dentro de seus propósitos. Deliciosos e inteligentes. Bem-humorados e críticos, sarcásticos e irônicos; corrosivos.

O diretor austro-polonês dizia que o bom diretor era aquele que não aparecia e pedia; “não aborreça as pessoas”. O que é bom nunca aborrece. Seja a poesia dos filmes de Tarkovsky, seja o silêncio dos filmes de Sokurov, seja o absurdo dos filmes de Greenaway, seja a crueza dos filmes de Haneke. Mas antes de buscar a poesia, o silêncio, o absurdo e a crueza, é preciso saber fazer uma boa obra de arte. Antes de tudo, temos que saber contar uma boa história, sob a pena de morte artística.

Billy Wilder é um excelente começo para esse aprendizado.



GVT.

segunda-feira, julho 12, 2010

Árvores abatidas, aves abafadas...

Salvador voltou a um status desagradável. Ao menos, pra mim. Hoje, é uma cidade onde pulo de alegria ao saber da vinda de espetáculos do fora, na esperança de assistir bom teatro com bom texto, boa direção, bons atores. Essa mistura essencial se tornou raridade aqui. Esse tripé ator/texto/diretor tem sido sempre manco.

Soa estranho às novas gerações – estou falando como um idoso, é engraçado isso – quando digo que houve época em que o público dizia que nosso teatro era bem melhor que os “enlatados”, os “caça-níqueis”, e até mesmo os clássicos e contemporâneos que vinham pra cá.

Isso, não necessariamente, era verdade. Aliás, Jorge Luis Borges dizia que a dúvida é um dos nomes da inteligência. Mas dava alegria e estímulo saber do prestígio que conseguíamos atingir.

Pois estamos num momento onde ansiamos por boas coisas vindas de fora. Ou, ao menos, coisas vindas de fora. Voltamos a ter um referencial equivocado de que não somos capazes de fazer algo como os espetáculos que vêm pra cá, o que é uma inverdade extrema, terra que somos de talentos e técnicos de alto gabarito, desempregados, fora do palco, desestimulados e sem perspectivas.

Nunca freqüentei tanto o Teatro SESC-Pelourinho quanto agora. Tem sido um alívio ver certos espetáculos que vêm pra cá pelos projetos de circulação. Pude assistir um Peer Gynt muito interessante da companhia PeQuod, do Rio de Janeiro, numa ousada mistura de bonecos com atores interpretando o clássico de Ibsen. E pude ver, agora, o espetáculo Árvores abatidas, ou para Luís Melo, da Marcos Damaceno Companhia de Teatro.

O espetáculo se baseia, ou se inspira, na obra de Thomas Bernhard, romancista e dramaturgo austríaco que teve apenas uma montagem profissional em Salvador (e provavelmente não terá mais nenhuma durante um bom tempo), mas que é montado e remontado na Europa, sendo, talvez o autor mais montado pelo Berliner Ensemble; muito por conta de seu atual diretor artístico, Claus Peymann, vienense como Bernhard.

Assim como na maioria da obra de Bernhard, o texto trata de uma Viena decadente. Num jantar oferecido a um grande ator – e os jantares estão presentes sempre na obra do autor austríaco – uma mulher, amargurada e oprimida pela mentalidade da província, espera a hora da refeição, enquanto destila numa sala contigua as mazelas dos personagens desse jantar.

A atriz Rosana Stavis interpreta a personagem na medida certa, acompanhada pelo violinista Roger Vaz, num dueto preciso e afinado. Direção econômica, cenário funcional, mais do que mirabolante – como gostam os deslumbrados – e, o mais importante; teatro.

Ao entrar na sala de espetáculos do SESC-Pelourinho, a primeira frase que disse foi; “ih, os alunos da Escola de Teatro não vão gostar porque é realista”. Na ignorância e despreparo técnico e intelectual que nos assola, a percepção em relação a um espetáculo como esse se torna estrábica e frágil. E seja talvez essa leitura desqualificada do fenômeno teatral que esteja, também, arrasando nossa criação artística em Salvador.

Ao sabor de modismos ultrapassados, sofremos uma decadência muito próxima à relatada pela personagem da peça, que é também a decadência e pensamento provinciano de Curitiba, que é talvez a decadência do pensamento que no século XXI se tornou tão violento e apavorante.

Um clássico montado numa encenação experimental, ousada e cheia de malabarismos, bonecos, efeitos. Um texto contemporâneo encenado de forma clássica. Ao teatro se abrem várias possibilidades. Todas as possíveis. Mas é preciso técnica. Aprender pra esquecer. O Peer Gynt e Árvores abatidas são duas experiências gratificantes de teatro, a despeito de escolas, preconceitos, linhas estéticas. Mostram o homem em suas fragilidades, defeitos e fraquezas. E também sua beleza e dignidade.

Esse é o princípio esquecido muitas vezes pelos aventureiros que não sabem o que estão dizendo, escrevem conceitos e mais conceitos pra serem aprovados em editais, mas possuem a fragilidade de quem não aprendeu pra esquecer. Ou não aprendeu. Ou esqueceu que a técnica só é válida quando some na espiral da cena.

Somos árvores abatidas. Aves abafadas. Produção decadente, poucas perspectivas de um mercado profissional. Abro os roteiros de espetáculos na cidade e fico torcendo pra que mais peças de fora venham, já que os artistas daqui não têm saída; ou melhor, citando Tom Jobim, têm como única saída o aeroporto.


GVT.

segunda-feira, julho 05, 2010

O Teatro Baiano e o Carlismo e o Petismo e o... (?!?)


Meu caro amigo Gil Vicente, o Tavares,

Quando você diz que o teatro baiano desandou, entendo nas entrelinhas que o que você diz que desandou foi um determinado modelo de se fazer e produzir teatro em Salvador. Esse modo de fazer e produzir ocasionou aquela decantada série de CONQUISTAS que sempre nos referimos aqui e ali neste blog e que estão bem explícitas nas nossas últimas seis postagens. Não vou me repetir agora, listando tudo de novo. Leia!

A atual gestão fez tábula rasa, SIM, neste modelo. Quis e realmente começou praticamente do zero. Alterou profundamente as regras, o que terminou por destituir todos os “atores sociais” que no momento anterior tinham poder de fogo ou alguma relevância de ação, tenham sido estes pessoas físicas (diretores, atores, produtores, críticos) ou jurídicas (jornais, instituições públicas e privadas, como o Goethe e as escolas de línguas a que você sempre refere).

Isso aconteceu INDEPENDENTEMENTE dos acertos e erros ARTÍSTICOS que muitos deles cometeram no passado em questão. Por isso a expressão mais ouvida na época (2007, 2008...) foi o de: “quanto revanchismo!”. Eles foram afastados porque, causa e conseqüência, foram protagonistas de uma máquina montada pelo Carlismo, máquina cultural decantada em verso-e-prosa nas Faculdades de Comunicação APENAS (sic) como arsenal de propaganda e marketing do referido grupo político. Eles foram afastados um-a-um, tenham sido eles carlistas de nascimento ou “apenas pessoas que ‘ ingenuamente’ souberam trabalhar com a estrutura que por hora encontraram”.

Sobre a mudança no xadrez, ouvi recentemente o comentário: “Ingenuamente!? Ah... Isso é a cara de ator, dessa “gente de teatro”! Quanta alienação! Bem feito, quem mandou? Trabalhando numa estrutura que ao fim e ao cabo APENAS servia ao mal...” E a ordem foi dada: Delenda est Cartago!

Mais uma vez e para ser mais clara: A mudança CENTRAL e definitiva não foi causada por questões artísticas e estilísticas internas ao teatro. Pelas tensões estéticas que são MUITAS e que já abalavam a nossa cena soteropolitana! Pelas correntes que se contradizem e que encontram diferentes soluções para velhos e mesmos problemas... Foi causada, sobretudo, por uma mudança no poder político.

Há que se considerar ainda que, mais ou menos entre 2002 e 2006, o teatro baiano(como disse no post anterior sem citar datas) já estava também exaurido frente aos temas que os esgarçaram (excesso de baianidade) e o mecanismo das leis de incentivo que não favorecia o surgimento de novos nomes e o arejamento necessário para que um ciclo de criação saudável se mantivesse... Portanto, a mudança de governo de 2006/2007 aspirou TAMBÉM este ar de insatisfação da própria "classe".

O teatro agora TERIA que servir a novos objetivos... O teatro agora era instrumento de OUTROS “atores sociais”. De forma muito rudimentar: sai o teatro a serviço da propaganda marqueteira da “Bahia que dá certo” e entra o teatro-mudança-social, que PRETENDE “alterar profundamente” as mazelas da sociedade super-injusta em que vivemos. Um e outro não são estereótipos? Pois é...

É isto que é o cerne do ETERNO Ba x Vi a que me refiro. O Teatro na Bahia quase (nunca?) consegue ser DONO de si mesmo... O teatro apenas mal e porcamente consegue (conseguiu) criar um campo simbólico onde seus problemas e suas questões poderiam/deveriam ser resolvidas internamente. Há problemas externos ao teatro e há problemas INTERNOS à arte da cena. E os problemas internos, com mais ou menos intensidade, atingem o teatro na Bahia, no resto do Brasil e no mundo. É mais ou menos um corpus unívoco de questões. Algumas questões milenares, aqui e ali pinceladas por pressões da modernidade-tecnológica.

E a partir deste ponto precisamos ainda mais de atenção com este texto e um pouco de boa vontade interpretativa.

Não quero dizer que a criação deste campo simbólico seria a prova cabal de que o teatro está se lixando para a sociedade em que vive... Isto é o que pensam alguns SOCIÓLOGOS. Alguns! Mas há outros que acreditam que a maneira do teatro interferir/criticar/raciocinar/satirizar/ajudar esta sociedade NÃO precisa/deve ser tão subserviente, ou seja, instrumental. Que esta maneira REALMENTE é de outra natureza...

Este campo simbólico, “uma área do teatro na Bahia”, NUNCA foi estabelecido de forma coerente internamente e legitimada pelos seus próprios saberes artísticos, SEMPRE foi legitimado primeiro por interesses políticos. Sempre foi arregimentado por apoios partidários. Daí que quando um partido cai leva todas as instituições e “atores sociais” que criou em sua época, porque isto cria a impressão de que estas instituições que também SÃO artísticas, são sobretudo políticas... É um mal de nascença. É a dança de Shiva, a dança da destruição e re-construção que sempre me refiro. Sabemos que foi assim com o Carlismo, está sendo com o Petismo e será assim com qualquer ISMO que assuma o poder (Será??).

Se nós não criamos nossas estruturas, alguém as criará por nós. Por isso, nunca se acha que: “Fulano está lá porque é bom”. SEMPRE se pensa: “Fulano está lá porque é amigo/parceiro/comparsa/companheiro de BELTRANO”. O MODO como as coisas se organizam autorizam este raciocínio!! Tanto antes, na década de 1990, quanto agora, nos anos 00. Mesmo o cara (a cara) sendo competente...

Daí que tanta gente se confunda, não sabendo reconhecer a excelência que o teatro baiano alcançou nos anos 1990! Quando o teatro fez um mercadinho, quando tentou ter platéia local cheia (formada não só pelos amigos e parentes dos artistas) e quando (ousadia!) tentou EXPORTAR, produzir peças para o mercado externo que, conseqüência, deixou um número de atores nossos pelos atuais centros de produção mais estruturados (polêmicas sobre isto num capítulo à parte).

Bom, esta incapacidade de gerenciarmos nossas hierarquias e valores internos ao fazer teatral é o grande mal que nos abate enquanto área: não sabemos julgar por nossos próprios critérios (que já são muitos!). Esses critérios estéticos até são usados na "briga pública", mas, por trás, ficamos todos com a impressão que a questão mesmo é outra... Porque é realmente BELTRANO que sempre legitima os nossos parceiros. Afinal, foi Beltrano que os colocou LÁ. Nós não reconhecemos e não fortalecemos nossas hierarquias internas e, portanto, não aceitamos os sucessos/fracassos. Estes são sempre culpa de um outro.

Quando nós “gente de teatro” criticávamos o teatro da Bahia da década de 1990, que, além de todos os acertos artísticos, tinha seus horrores [estava excessivamente fechado em alguns artistas (a maioria "ótima", mas não todos, e com outros "ótimos" querendo entrar na festa também, mas sem poder), ultra-dependente das leis de incentivo fiscal (questão nacional, o Rio e São Paulo peitaram uma mudança menos drástica), eivado de relações paternalistas entre artistas e alguns funcionários públicos (a maioria competente, mas não todos)], isso para muitos foi a deixa para entender que ERA HORA DE MUDANÇA. E era.

E a mudança, mais uma vez, veio de FORA para dentro. Com os artistas TENDO que se ajeitar no espaço traçado por interesses outros. E deu nisto que tá ai. A “mudança cirúrgica” que falei no último post sequer foi pensada. Para que? Pra quem!? QUEM é que precisava de mudanças cirúrgicas???! Questões artísticas dão muito trabalho... E esta "gente de teatro" já é tão briguenta entre si. Mas, repito: uma coisa são as nossas brigas domésticas, de nossa GRANDE família teatral (não só da família teatral baiana...), que quer fazer mil e uma coisas com a cena. OUTRO problema, são as questões DE FORA.

Posso conversar HORAS sobre isto e ESCLARECER mais, também, a quem interessar possa, caso meu raciocínio esteja mal expresso.

Mas quero voltar para os comentários ao texto de Gil...

Cris, me diga onde no teatro baiano você tem acesso a tudo? Olhando agora o roteiro do atarde.com não é a impressão que eu tenho... E, depois, mudamos as condições de possibilidade para que determinadas FORMAS de teatro fossem executadas em Salvador. Por exemplo, montar um texto contemporâneo ou clássico que ainda pague direito autoral (CARO) com artistas da terra ficou ECONOMICAMENTE inviável!!!! Só podemos ver (se for o caso) este texto montado por atores de outras plagas em viagem pela nossa terra.

E montar um clássico não é assim: “Quer montar? Monta!”. O próprio exemplo que você dá, de Hackler, é um caso-atípico, um diretor de exceção, praticamente um bastião que há anos legitima a prática de diálogo com os grandes autores (contemporâneos ou não) produzidos nas capitais. Uma atividade rara/cara/essencial nas melhores “famílias do teatro”.

Como disse Gil, se a gente visitar qualquer “capital do mundo” vamos ver em cartaz pelo menos um Brecht, um Shakespeare, um Ibsen, um outro autor-referência e bem montado. Mas, não esqueça, Gil, que falamos da “capital da Bahia”.

Um beijo carinhoso,
da amiga Jussi

domingo, julho 04, 2010

Memórias de um teatro desandado I

O teatro em Salvador desandou. Isso é um fato inegável. Principalmente pra quem viveu, como espectador e aspirante a artista, a década de 90.

Muito se tem culpado a atual gestão da cultura do governo do estado, mas muita coisa já vinha se desestruturando antes, muita coisa importante foi sumindo, mudando; mentalidades, financiamentos, apoios, parcerias. E faz parte de nossa sociedade patriarcal querere sempre achar um grande salvador ou o grande culpado, mesmo que, por trás dessa questão, exista realmente um salvador e um culpado maior.

Fernando Guerreiro começou 20 anos antes de mim. Ele pôde ser testemunha de que a década de 70 foi importantíssima, teve seus sucessos, como Marilyn Miranda, cuja fila fazia voltas na Araújo Pinho, endereço da Escola de Teatro, teve suas grandes montagens, grandes textos, grandes atores e diretores. Na terceira parte deste artigo há um depoimento dele, por isso o cito.

Posso falar um pouco da década de 90. E lembrar muito do que acontecia ali, foi deixando de acontecer, e nos empurrou a essa tragédia mal-escrita que virou nosso teatro.

Lembro que os institutos de línguas estrangeiras conseguiam verbas para montagens em Salvador. Citando apenas o ICBA, Salvador teve grandes montagens – e não cabe aqui relacionar o grande com a qualidade e gosto pessoal – que marcaram a cidade. O Merlin de Carmen Paternostro ficou no imaginário das pessoas. No centenário de nascimento de Bertolt Brecht, em 1996, tivemos três montagens de seus textos num conglomerado de verbas que não faço idéia, mas que possibilitou a montagem de Mãe Coragem (direção de Luiz Marfiz), O círculo de giz caucasiano (direção de Paulo Dourado) e Eu, Brecht, direção de Deolindo Checcucci, com dramaturgia de Cleise Mendes, a partir de poemas, canções e trechos de peças do autor alemão.

Essas montagens todas foram feitas pela Cia de Teatro da UFBA, que começou seus trabalhos na década de 80, com um Pirandello, e na década seguinte nos legou grandes peças, com grandes atores, textos interessantes quase sempre sob a batuta de Harildo Déda ou Ewald Hackler, responsáveis por momentos memoráveis da nossa história como O menor quer ser tutor (Handke/Hackler), Hedda Gabler (Ibsen/Déda), Noite encantada (Mrozek/Hackler), Zoológico de vidro (Williams/Déda). Sem contar com Na selva das cidades, texto de Brecht que Deolindo dirigiu numa grande briga cênica entre Fernando Fulco e Gideon Rosa, e tantos outros que não vi, mas que ouvi falar, como O senhor Puntilla e seu criado Matt, também de Brecht, que Paulo dourado dirigiu tendo a gloriosa Yumara Rodrigues como Puntilla.

Além dos institutos de língua, a própria Escola de Teatro da UFBA conseguia verba federal. Fosse por qual caminho fosse, a lei Fazcultura possibilitou também grandes produções de Guerreiro, Deolindo, o Theatro XVIII passou a ser um espaço de criação para a parceria Aninha Franco/Rita Assemany, bem como convidava outros artistas para criarem trabalhos lá, tudo dentro de uma verba anual viabilizada pelo Fazcultura.

Márcio Meirelles e Angela Andrade resolveram peitar a tarefa de assumir o decadente Teatro Vila Velha, fizeram projetos interessantes, como o 3 & pronto, que consistia em montagens rápidas feitas em 3 semanas para apresentar em outras 3. Márcio dirigia Brecht, fazia suas montagens com o Bando de Teatro Olodum, e conseguiu, através do governo do estado, a tão sonhada reforma do Vila Velha. Muito e merecido recurso foi destinado à reforma, e o teatro pôde – também em sua maioria, pelo fazcultura, outras com recurso direto do estado e outras na cara e na coragem, se aproveitando da estrutura do espaço – acolher grupos de teatro, e por lá passou um Fausto#0, de Goethe, um Material Fatzer, de Brecht/Müller.

O diálogo entre a cultura baiana e a herança européia era saudável. Ao menos em seus resultados. Carmen Paternostro dirigia Os negros, de Genet, e Dendê e Dengo, de Aninha Franco. Deolindo dirigia Angel City, de Sam Sheppard e de sua própria autoria O vôo da asa branca. Dourado fazia suas peças épicas com dramaturgia de Aninha Franco e/ou Cleise Mendes; A conspiração dos alfaiates, Canudos. Guerreiro fazia Equus (Schaffer) e Calígula (Albert Camus), mas também Os cafajestes, e Aninha Franco.

Ainda havia o Núcleo do TCA, que na época fazia grandes montagens, grandes clássicos, sempre com diretores de destaque que eram convidados por mérito, algo esquecido nos tempos atuais. Havia ainda muita gente que esqueci, muitos recursos que não lembrei, até por ser um novato e este texto não é histórico, são lembranças de um adolescente entusiasmado com o mundo que se abria na minha frente, ainda perdido em meio àquilo tudo.

Memórias de um teatro desandado II

Lembro dos meus tempos de aluno da Escola de Teatro. Discutíamos as novas montagens como se discute futebol. Era papo de corredor e de pátio da escola quem ia montar o que, quem tal diretor escolheu pra fazer tal personagem, quem havia sido convidado pro Núcleo do TCA, de quem era a nova montagem da Cia de Teatro da UFBA, que ator estava se destacando.

E não havia, nisso, um sentimento de inveja. Nosso sonho era crescer profissionalmente pra poder trabalhar com essas pessoas. Não havia aquela mentalidade atual de que os profissionais eram privilegiados, que eles já tinham ganhado demais e que era a nossa hora, que a verba tinha que vir pra nós; jovens talentos. Não, o que queríamos era poder estar perto dessas grandes referências. E conquistar, aos poucos, nosso espaço.

Entre 1995 e 1999, período que passei pela Escola de Teatro, vi muita gente boa se formando. E sendo absorvida pelo mercado; que alguns, hoje em dia, pra defender a atual crise, dizem nunca ter existido. Era um processo natural, uma seleção natural da espécie artista. Naturalmente, os que se formavam em interpretação e eram fracos viraram iluminadores, figurinistas, produtores, ou iam procurar coisa melhor pra fazer. E assim com direção, também. Sem rancor, sem remorso, sem disputa desleal.

Vivíamos um período de grandes eventos e pequenas montagens que aconteciam paralelamente e tinham seus espaços na cidade. As peças de formatura dirigidas por Harildo tinham momentos memoráveis, como a montagem de MacBeth, de Shakespeare, com um sensacional cenário de Hackler, um grande figurino de Claudete Eloy, uma luz que Eduardo Tudella fez, com pouquíssimos refletores, que muito peixe grande não conseguiria com milhões de elipsoidais. Lembro de termos no mesmo ano a estréia de O sonho (Strindberg), com direção de Gabriel Villela, e A casa de Eros (Cleise Mendes), com direção de José Possi Neto, comemorando o aniversário de 40 anos da Escola de Teatro. No mesmo ano que tivemos Noite encantada de Hackler.

Era muita coisa acontecendo. Projetos, comemorações, as verbas apareciam, os artistas trabalhavam. Grandes atores no palco, grandes textos em cena, grandes diretores pluralizando o teatro de Salvador. Eu ainda peguei a rebarba disso. Consegui entrar em circuito comercial com minha peça de formatura, Quartett, a convite do diretor do TCA, Theodomiro, sem precisar entrar em edital. E isso ajudou a me projetar, me ajudou a ser convidado por Eliana Pedroso pra dirigir os 40 anos de teatro de Yumara Rodrigues. Assim pude me iludir com a possibilidade de uma contínua carreira profissional, que acabei conquistando com uma razoável marca de ao menos uma produção por ano.

Até chegar 2007. Primeiro ano de PT no poder. Não fiz absolutamente nada. Nem recebi convite, nem consegui recurso pra peça alguma, nada. Este foi o único ano que não fiz teatro desde que entrei na Escola de Teatro, em 1995. Mas 2007 já era um ano que, a despeito da nova gestão que fez tabula rasa e formatou o HD da nossa cultura, apagando todos os nossos arquivos, era um ano que simbolizava o paroxismo de algo que estava desandando.

O Fazcultura declinou. Era claro e evidente que havia, antes, uma política do Q.I., quem indica, pra que as empresas financiassem espetáculos. Bem ou mal, coisas aconteciam e eu, que nunca fui de corriola alguma, conseguia trabalhar com Guerreiro e Márcio Meirelles, com Aninha Franco e Harildo Déda. Os institutos de língua tiveram seus orçamentos apertados. A possibilidade de conseguir verba da ACBEU pra montar um texto americano, ou do ICBA pra montar um texto alemão deixou de existir. As coisas no século XXI já vinham mal das pernas, e a tabula rasa de 2007 tirou do mercado muito gente.

Nós tivemos público. Tivemos projetos que atraiam público. Tínhamos uma imprensa que dialogava ativamente com as nossas produções; pro bem ou pro mal. As instituições públicas e privadas começavam a achar que poderia ser um bom negócio apoiar esse “teatro baiano”. Mas tudo isso foi por terra.

Não tenho competência histórica, política e científica pra ficar aqui dizendo os “porquês”. Mas é fato inegável que algo desandou. E, em meio a tudo isso, o retrocesso profissional alavancou um retrocesso estético, em busca de modismos de décadas passadas. E os palcos baianos começaram a se encher de amadorismos, de “pesquisas estéticas” ultrapassadas, fracas, inconsistentes. Muita coisa ruim começou a estrear. Com tão poucas opções, o público, que já arrefecia junto à crise que estava se instalando na cidade, deixou de ir com medo do que pudesse ver.

Eu cheguei a ouvir a alguns anos atrás de muita gente, público comum, leigo, que a qualidade do que nós fazíamos nos palcos da cidade era bem melhor dos que as peças do eixo Rio/São Paulo que vinham pra cá. Chegamos a ser referência. O papel da Escola de Teatro, e de sua pós-graduação, ajudou a estimular que muita gente viesse pra Salvador em busca desse “teatro baiano”, dessa alternativa de produção ao eixão do sudeste.

Mas essas pessoas começaram a vir num momento onde o teatro decaia. E ouço, com muito amargor, o questionamento de muitos sobre “cadê aquele teatro baiano que tanto me falavam?”.

Eu também estou à procura.

Memórias de um teatro desandado III

As questões estéticas do teatro baiano, que apenas toquei acima como outro sintoma de nossa crise, não foram exploradas porque, recentemente, numa conversa com o diretor Fernando Guerreiro, angústias e anseios em comum me levaram a provocá-lo a escrever um texto curto sobre isso tudo.

Se você for, neste exato momento, em qualquer capital do mundo, verá em cartaz um Ibsen, um Brecht, um Shakespeare, um Beckett. Sou dramaturgo, entusiasta da nova dramaturgia, mas não podemos sedimentar uma realidade teatral numa cidade sem dialogar com os clássicos. Sem educar, formar um público que possa ter a oportunidade de conhecer nossa história, apreciar grandes personagens, se deleitar com textos geniais.

Não acredito numa arte que não dialogue com seu passado. Seja pra criticá-lo, seja para citá-lo, seja para ressuscitá-lo ou negá-lo. E não há diálogo com o nada, no vácuo não se produz som. E sem grandes textos no palco, não podemos ter grandes esperanças.

Segue o texto de Fernando Guerreiro:

SOBRE O QUE REPRESENTAR

Sou um diretor à moda antiga, gosto de estudar e dirigir um bom texto. Ao longo de sua estória, o teatro viu seus palcos invadidos por diretores autores, atores autores, ou simplesmente, ausência de autores, as famosas perfomances, criações coletivas, acontecimentos teatrais, ou como se queira denominar montagens em que a palavra perde em importância para todos os outros elementos da encenação.

Como podemos formar platéias sem oferecer-lhe a oportunidade de entrar em contato com grandes obras dramáticas? Para mim, a palavra é a essência do drama, seu elemento principal e o que o personaliza. É fundamental o desenvolvimento de novos dramaturgos, que saibam construir a base para grandes encenações. Mas para isso precisamos trazer o texto de volta aos palcos, sem firulas, sem inovações ( uma ilusão que já perdi, pois sei que tudo se repete), apenas com competência e muito, muito trabalho.

Comecei a minha carreira no final da década de 70 e tive o prazer de ter contato com montagens de pérolas da dramaturgia. De João Augusto, no Vila Velha, à saudosa Cia de Teatro da UFBA, pude assistir Sófocles, Goldoni, Pirandello, Shakespeare, Moliere, Nelson Rodrigues, Oduvaldo Viana Filho, Cleise Mendes, Nélson Araújo, Suassuna e por aí vai. E, o mais importante, em montagens que não brigavam com estes textos, não “recriavam” o que estava no papel. Sempre que converso com jovens diretores eu digo: cuidado com o que vocês vão fazer com o texto! É preciso dissecá-lo, estudá-lo a fundo, descobrir todas as suas nuances e possibilidades. Criar uma relação de respeito e não de competição. Nunca querer aparecer mais que ele, mostrar que é melhor que ele.

Quero começar um movimento pela volta de grandes textos ao tablado, em montagens básicas, sem firulas ou enganosas “inovações”. O teatro baiano está vivendo um momento de ressaca, poucas estréias interessantes, um excesso de pós-modernismo de um lado, um excesso de comédias rasas do outro. Vamos buscar de novo a qualidade, trazer grandes atores de volta, representando textos essenciais. Só assim podemos sair da lama em que estamos chafurdando.

Fernando Guerreiro.