terça-feira, julho 15, 2008

A Rifa da Vaca

Temporada de caça aos patrocínios. Ou melhor, esta temporada nunca passa. Entra e sai mês e o dia-a-dia de qualquer grupo de teatro que se preze (e quem mais o prezaria?) é ir em busca de patrocínios, apoios. E isso na maioria das vezes sem nenhum fundo de caixa para bancar a feitura dos projetos, o trabalho das pessoas... Aos rés do chão: falta dinheiro mesmo para pagamento da impressão e do envio do sedex pelos Correios (ops, que estão em greve).

Há pouco tempo discutimos no blog do Teatro NU (http://teatronu.blogspot.com/) o valor das verbas da Funarte para os patrocínios na Bahia. Algo ofensivo para um estado com a nossa trajetória de espetáculos, atores, graduação e pós-graduação em Artes Cênicas: 20 mil, 30 mil contos... A saída já se tornou um clássico: Colocar o mesmo projeto em todos os editais que dão largada. Resultado? No final do ano são 300 projetos patrocinados pela Funarte, 300 pelas secretarias de cultura estaduais e 300 pelos patrocínios ligados aos bancos. Uma maravilha!

Só que esquecem de destrinchar nos relatórios mágicos que, na verdade, não são patrocinados 300 projetos vezes 3; Mas são, sim, os mesmos 300 que buscam um pouquinho do dinheirinho nas três instâncias. Lógico que este movimento é contraditório. Já que se fala em pulverização de recursos, de multiplicidades de grupos ganhando, quando vai se ver, a única opção que um grupo/artista tem de produzir algo significativo, e minimamente remunerado, é inscrevê-lo em todos os editais que encontra. São os mendigos oficiais que o crítico André Setaro delineou também na captação do cinema.

Quer dizer: é a democratização dos recursos, mas os projetos precisam ser “privilegiados” em mais de um edital! Sob pena de acontecerem de forma canhestra. Cada produção de peça, mesmo as de baixíssimo orçamento virou um trabalho duplo, triplo, sem exagero, às vezes quádruplo de captação. Desgastante isso? Imagina!! Somos todos tão bem remunerados! Ora! Às vezes não é possível nem colocar pagamento de administração num orçamento... O seu prêmio já é ter "sua obra" pronta.

Isso me lembra de uma vez, em 1982, quando em Mutuípe, a cidade flor do Vale do Jequiriçá no interior da Bahia, quiseram organizar o sesquicentenário da cidade. O povo do grêmio ficou à cata de apoios (em dinheiro mesmo!!) de diversos comerciantes da praça. Mas para não onerar muito cada um e, ao mesmo tempo, todos poderem participar daquele momento único nunca antes vivido na história do município, foi rifada uma vaca, doada por um abnegado.

Resultado: foram vendendo os bilhetinhos e, no final, o ganhador da mimosa, outro abnegado (a história, como se vê, está cheia deles) ainda doou a vaca para ser abatida num churrasco dominical no qual todos se empanturraram e ainda saíram reclamando da pobre vaquinha que era ossuda. Por que será?

Por Jussilene Santana
junesantana@gmail.com

quarta-feira, julho 02, 2008

A mulher de Lott


Há doze anos venho me profissionalizando em duas áreas em Salvador. Há pouco mais de uma década iniciei, simultaneamente, minha graduação em jornalismo e meu primeiro curso profissionalizante em teatro, ambos na Universidade Federal da Bahia. A Ufba foi a primeira instituição que me acolheu quando saí (?) do bairro de São Caetano, para além dos encontros na Igreja do fim de linha e do trabalho no armazém de frutas e verduras de Seu Branco, meu pai. Na Ufba fiz, além da referida graduação, duas extensões e duas pós. Nela conheci amigos, marido e uma plêiade de mestres-artistas. Sou, como se diz, cria da sua costela Tenho algumas de suas qualidades e todos os seus defeitos.

Bem sei o quanto de energia e, porque não, de desgaste (ou será de pretensão? “Sejamos Idealistas!”) esta dupla empreitada profissional me exigiu. Mas como viver de arte na Bahia? Na falta de outros mecenas, a jornalista financiou a atriz. Do início para cá, as experiências se alternaram num intenso ir e vir, um bailado digno do “equilibrista/bêbado de Elis Regina”: assessoria de imprensa no Teatro Castro Alves, montagens como a de A Mulher sem Pecado e Shopping and Fucking, repórter do Correio da Bahia, encenação de Bolero e Senhorita Júlia, aulas para estudantes de comunicação e mestrado em artes cênicas...

Ganhei alguns prêmios em ambas as áreas e, por elas, trabalhei de graça uma porção de vezes. Se ressalto estes dois fatos não é por cabotinice ou falsa humildade (!?!), mas porque, ocorrendo juntos, eles dão para mim a exata medida do contraditório do nosso mercado, do conflitante andamento da “cultura baiana”. Cultura baiana que para muitos é um pleonasmo... Cito tais exemplos, sobretudo, porque vejo a chama eterna de muitos artistas que admiro se apagar nesta mente sem lembranças que é a construção de uma carreira numa cidade que, ainda em muitos aspectos, continua provinciana. Com os velhos endeusamentos e achaques das províncias, sejam estas americanas, latino-americanas ou russas.

Foi em meio a este percurso de questões que, durante quatro anos, trabalhei como repórter especial do jornal Correio da Bahia. Neste veículo, pude escrever sobre vários temas concernentes às artes. Não raro, todos ligados à memória. Há seis anos, numa megalomaníaca empreitada, eu escrevi um especial sobre os 500 anos (!) de teatro no estado. Este texto foi posteriormente selecionado para integrar a coleção Memórias da Bahia, do mesmo jornal. Durante quatro semanas de apuração, realizei entrevistas com atores e diretores, pesquisei dezenas de arquivos e livros sobre a atividade cênica entre o período colonial e os dias atuais. Este trabalho me proporcionou uma visão panorâmica da história do teatro baiano e de como os momentos de progresso e decadência vêm se alternando ao longo dos séculos, em intervalos cada vez menores. Seu título: Uma tragicomédia provinciana.

Através desta pesquisa, outros temas se fizeram instigantes e merecedores de aprofundamento. Diversos protagonistas desta imensa história aguardavam abordagens profundas e detalhadas, como o dramaturgo e compositor Xisto Bahia, o dramaturgo e diretor Agrário de Menezes, o diretor João Augusto e, obviamente, o idealizador da Escola de Teatro da Ufba, primeira no Brasil ligada a uma instituição de nível superior, o pernambucano Eros Martim Gonçalves.

Para o projeto do Correio da Bahia, cheguei mesmo a escrever o perfil do ator Mário Gusmão, primeiro ator negro da Escola de Teatro, figura bastante atuante no cenário artístico baiano entre as décadas de 1950 a 1980, que morreu em completa miséria no bairro da Liberdade. A matéria sobre sua vida foi capa do Correio Repórter, em abril de 2002, sendo utilizada na tese do pesquisador Jéferson Bacelar em doutoramento sobre o tema. Tal reportagem ainda serviu de base para um documentário sobre a vida do ator, realizado pelo cineasta Élson Rosário, em 2005.

Não foi um passo muito distante pensar numa pós-graduação utilizando este manancial. No mestrado, finalizado em abril de 2006, me propus a investigar a relação entre o jornalismo e o teatro na cidade, ou melhor, analisar a cobertura jornalística sobre o teatro, tentando considerar meu conhecimento acumulado nos dois campos. Se, num instante primeiro, pensei em me debruçar sobre o momento atual, para, então, compreender a minha própria inserção no ambiente, percebi que, para entendê-la, o mergulho tinha que ser mais profundo, voltando um pouco no tempo. O teatro contemporâneo se acha menos isolado do que poderia imaginar de um patrimônio cinqüentenário.

Daí que a dissertação Impressões Modernas – Compreensão e Debate Sobre Teatro na Cobertura dos Jornais A Tarde e Diário de Notícias (1956-1961) surge tentando investigar o comportamento da imprensa durante um dos períodos mais ricos do teatro baiano. São os anos de criação da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia, período durante o qual os procedimentos do teatro moderno foram trabalhados sistematicamente nas artes cênicas locais. A criação desta instituição também representou um marco na conscientização do trabalho em teatro como um campo autônomo, como arte e profissão. Antes dela, a atividade tinha predominantemente um cunho amador e diletante. Em 1959, é criada a primeira companhia profissional de Salvador: O Teatro dos Novos, grupo fundador do Teatro Vila Velha.

A minha pesquisa de mestrado se desdobrou numa série de escritos que vem sendo publicados na grande imprensa e em revistas acadêmicas. Em 10 de junho de 2006, em homenagem ao cinqüentenário da Escola de Teatro, publiquei no jornal A Tarde o caderno especial Celeiro de Talentos, no qual revisito a história e questiono parte do imaginário que se construiu sobre o período de sua criação. Sobretudo sobre o papel da imprensa no afastamento de seu primeiro diretor e idealizador, Martim Gonçalves. Para mim, é de capital importância, não ingenuamente se “fazer justiça”, mas entrar na dialética das personas históricas e seus feitos, fugindo de uma chave simbólica muito utilizada em nossa capital: de que há uma pretensa luta entre um bem contra um mal. Cabe ressaltar que, até então, o mal era o senhor Martim Gonçalves.

No doutorado, cujo título provisório é "MARTIM GONÇALVES: 28 peças contra uma província", pretendo analisar, pioneiramente, a polêmica produção artística capitaneada por Martim Gonçalves nos cinco anos de sua administração e os porquês de seu afastamento da direção da Escola de Teatro. Para além dos inúmeros eventos e aulas, objetivo destacar as vinte e oito peças de teatro que produziu com o declarado objetivo artístico-acadêmico de mostrar para alunos e (para uma cidade!) o que de melhor o mundo do teatro já havia produzido em termo de textos, soluções técnicas e questões poéticas até aquele momento.
P.s: Este texto foi produzido para a disciplina de Lia Rodrigues (Seminário Interdisciplinar de Pesquisa) que tem como objetivo descrever o sujeito e sua trajetória rumo ao objeto do doutorado. Para quem esqueceu, a mulher de Lott foi aquela que, "desobedecendo a ordem de Deus", resolveu ficar e, olhando para trás (para ver o que aconteceria com a sua cidade), virou uma pedra de sal.