domingo, junho 18, 2006

OS TRÊS FUNDAMENTOS DA ESCOLA DE TEATRO

Especial 50 anos
Por Jussilene Santana

ARTIGO DE ABERTURA
No próximo dia 13 de junho, a Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia comemora 50 anos. Em meio século de história, se tem muito para contar desta unidade que formou nomes de projeção nacional como Sônia dos Humildes, Othon Bastos, Geraldo Del Rey, Helena Ignez, Harildo Déda, Nilda Spencer... Muitos deles atuantes no Cinema Novo. E que, mais recentemente, projetou nomes televisivos como Wladimir Brichta e Wagner Moura. Quantos professores e diretores não passaram pela instituição? Quantos alunos nela não se formaram? Anônimos nacionais ou famosos locais, todos fizeram com que estes 50 anos de Teatro fossem possíveis.

Apesar disso, a proposta deste ensaio é ressaltar - mais do que nomes – idéias e ideais. Afinal de contas, os valores é que são eternos, podendo reencarnar (ou não) em homens perecíveis. E teatro é arte coletiva, num só artista reconhecemos todos os outros que o formaram. O texto não pretende contar a história destes 50 anos – uma empreitada ainda a ser defendida –, mas investiga, nos seus cinco primeiros anos, os fundamentos que lhe movem. Um busca por princípios, no princípio.

O ensaio parte da criação da Escola de Teatro, em 1956, e arrisca levantar três pilares fundamentais que dariam o significado e o caráter desta empreitada, ainda hoje única em relação a outras iniciativas do Brasil: o teatro é prática; o teatro é profissão; e o teatro é moderno.

No livro Avant-garde na Bahia, Antônio Risério relativiza o papel pioneiro da Escola de Teatro. Para tanto ele se baseia nos comentários reacionários publicados pela imprensa contra o projeto de Martim Gonçalves. Tendo como base um levantamento de mais de duas mil fotos e matérias sobre o período, tento resgatar episódios que a crítica “esqueceu” de relatar e que dão a profundidade do diálogo que a Escola empreendeu entre as linguagens internacionais e as tradições populares. Diálogo com o objetivo único de transformá-los em ‘peças para o público’.

Nota-se, para além dos anos, que da Escola exigem-se ações que, como instituição, ela não se dispôs a realizar. A Escola se propõe a ensinar métodos e técnicas. Mas, assim como ela é a mãe do teatro baiano, nela também recaem as origens e as causas de todos os males das artes cênicas locais. Veremos que isto acontece porque, ao contrário de suas congêneres do país, ela se insere entre as produtoras de peças profissionais do circuito. Grande agente de um estado pobre em políticas culturais, a Escola se torna uma real possibilidade para a viabilização de projetos na área. Fora dela ou, sem seu apoio, as coisas ficam ainda mais complicadas. Daí que tantas idéias a circundem.

Em paralelo a isso, como as demais unidades da universidade brasileira, não há mais unidade de pensamento no corpo de professores que compõem seus quadros. Ou melhor, não há UMA Escola de Teatro. Há várias. Cada uma delas, contemporaneamente acionando tradições e técnicas diferentes, contudo, com um PASSADO em comum. Para além destas questões, uma coisa talvez seja certa: só iremos encontrar nela nos próximos 50 anos, aquilo que formos capazes de lhe dar.

Jussilene Santana é atriz, jornalista e mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC/Ufba. Defendeu dissertação sobre a cobertura jornalística do teatro na Bahia, entre os anos de 1956 e 1961. Melhor atriz pelo Prêmio Braskem de Teatro 2005 e Prêmio Banco do Brasil de melhor reportagem em 2002. junesantana@ig.com.br

TEATRO É PRÁTICA

Especial 50 anos
Teatro Se Aprende Fazendo Teatro

“Encontra-se nesta capital o Sr. Martim Gonçalves Pereira, que vai organizar e dirigir a Escola de Teatro da Universidade da Bahia, cujas aulas terão início no próximo dia 15 de agosto, estando as matrículas abertas na Avenida Araújo Pinho, 12. Além do ensino da arte dramática, a referida escola formará também um grupo de teatro que, logo de início, contará com a colaboração dos profissionais Ana Edler e Antonio Patiño”.

Assim o jornal A Tarde anunciou a criação da Escola de Teatro, da então Universidade da Bahia, em nota do dia 10 de agosto de 1956. O que é particularmente notável no trecho acima é como ele já antecipa os múltiplos papéis que marcarão a desempenho do Casarão do Canela nos próximos 50 anos. Em primeiríssimo lugar, aquele que marca sua peculiaridade em relação a outras escolas no Brasil: a idéia de que “teatro se aprende fazendo”. Para o fundador e primeiro diretor da Escola, o pernambucano Eros Martim Gonçalves Pereira, teatro era uma prática que se aprendia em cima do palco, através da troca contínua entre atores profissionais, professores-artistas e alunos.

Alimentavam esta premissa: sua experiência como co-fundador do Teatro Tablado, junto com Maria Clara Machado, trabalhando aqui parte do repertório montado com ela no Rio de Janeiro; sua livre inspiração na rotina da Escola de Arte Dramática (EAD), ligada ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo; seu conhecimento da estrutura de escolas de teatro americanas (que pregava a autonomia total, inclusive de verbas, para estas unidades); e as técnicas de atuação do Actor’s Studio, em Nova Iorque, que deram o viés stanislavskiano-naturalista à formação dos primeiros atores.

Dois semestres antes da fundação da Escola, Gonçalves vinha se familiarizando com a cidade através da realização de cursos livres de teatro. Suas aulas aconteciam no subsolo da Reitoria, na Escola de Enfermagem e na Residência Universitária. A Escola de Teatro será criada a partir da aquisição do Solar Santo Antônio – que inclusive havia pertencido à família do escritor baiano Dias Gomes – como sede da unidade e antiga residência do diretor e professores. Já na época, convencionou-se que o dia 13 de junho seria a data de aniversário da Escola, em homenagem ao padroeiro do antigo casarão.

Antes da Escola, o teatro em Salvador se resumia às atividades de grupos amadores que se revezavam nos raros palcos da cidade, como o Teatro do Iceia, o Cine-Teatro Guarani (atual Glauber Rocha) e o teatro do edifício Oceania, além de espaços cedidos por escolinhas, clubes e paróquias. Trabalhando sem apoio, sem público, sem recursos técnicos ou formação, o movimento começara a despontar na década anterior, quando se intensificaram as transmissões de rádio-teatro, com radio-novelas patrocinadas por produtos de beleza. A cidade recebia eventuais companhias em turnê, enquanto os amadores se exibiam uma ou duas vezes ao ano, geralmente encenando operetas, comédias e peças infantis, em ambientes com quase nenhuma estrutura profissional ou mesmo em suas residências.

O Teatro de Amadores de Fantoches e o Teatro de Cultura da Bahia fugiam um pouco à regra, buscando apresentar textos mais representativos do repertório clássico e moderno, mas sem conseguirem dialogar com as inúmeras tradições de encenação e atuação que já sacudiam as artes cênicas no resto do país. Os amadores baianos se queixavam de que nada mais acontecia porque a cidade não possuía mais teatros. Nesta época, também eram comuns, como ainda o são em municípios do interior, as apresentações de peças religiosas patrocinadas pela prefeitura durante a Semana Santa e Natal.

Em meados dos anos 50, a Bahia acabara de ingressar no fluxo do capitalismo moderno, com as atividades advindas da extração petrolífera, e sua elite se revezava no poder enquanto aspirava uma cultura de academias, valorizando a oratória rebuscada e o conhecimento de aparência enciclopédica. Ainda sem a chegada da televisão (que, em Salvador, acontece em novembro de 1960, com a criação da TV-Itapoan), a diversão se resumia ao cinema, ao rádio, ao passeio na Rua Chile, à conversa com amigos e os raros banhos de mar.

Diante deste cenário, a Escola de Teatro surge como um projeto arrojado, com objetivos inter-relacionados: divulgar a dramaturgia clássica e moderna, através de suas encenações-modelo e, numa junção entre teoria e prática, formar artistas profissionais (atores, diretores e técnicos) e público nos mais atuais métodos e técnicas teatrais e cinematográficas. Até a inauguração do Teatro Santo Antônio, atual Teatro Martim Gonçalves, em 26 de abril de 1958, com a peça Senhorita Júlia, de August Strindberg, Martim Gonçalves enfrentaria o velho problema da falta de teatros com uma atitude do Teatro Moderno: utilizando espaços alternativos afinados com o estilo e o tema das encenações. É assim que o vemos apresentando os primeiros espetáculos da Escola, o medieval português Auto da Cananéia, na Igreja de Santa Tereza, o baile pastoril O Boi e o Burro a Caminho de Belém, de Maria Clara Machado, no parque da Reitoria, e A Via Sacra, de Henri Gheon, no Cruzeiro de São Francisco.

É realmente através da montagem de espetáculos que se processa a grande contribuição da Escola para a atualização das artes cênicas na Bahia, com repercussões no ambiente cultural nacional, fornecendo atores e técnicos para o cinema e para a TV. A primeira administração (1956-1961) monta este projeto didático e encena 24 peças, dirigidas por cinco encenadores, além do próprio Gonçalves: Gianni Ratto, um dos co-fundadores do Piccolo Teatro de Milão; Charles McGaw, diretor e escritor americano; Herbert Machiz, diretor do Artist’s Theatre, um dos mais importantes teatros experimentais americano; Antonio Patiño, diretor e ator carioca; e Luis Carlos Maciel, encenador e autor gaúcho, antigo diretor da Escola e hoje colaborador de novelas da Record.

Através da integração entre os cursos da unidade (interpretação, direção, cenografia e traje), e num árduo processo de ensino e prática, Gonçalves exibe os mais diversos autores do repertório mundial, iniciando seu projeto com o medieval português de Gil Vicente até o modernismo contemporâneo do japonês Yukio Mishima, sem esquecer a atualidade da Ópera dos Três Tostões, de Bertolt Brecht e o pioneirismo de Calígula, de Albert Camus, sendo a primeira vez que o autor francês é encenado no país. Parodiando o slogan do governo JK, Martim Gonçalves apressa o passo do teatro baiano e tenta fazer quinhentos anos em cinco, mostrando à cidade o que de melhor havia sido produzido pela dramaturgia universal. Cabe ressaltar que, apesar de ligados a uma estrutura universitária, estes cursos foram profissionalizantes e livres até 1963, quando se formalizou o curso de Direção Teatral. Apenas em 1983, se institucionalizaria o Bacharelado em Artes Cênicas, agora com habilitação em interpretação.

Nas décadas de 60 e 70, em paralelo à Ditadura, a Escola, como toda estrutura universitária, enfrentaria sérias dificuldades administrativas e financeiras. As verbas para espetáculos passam a ser raras, como o são para toda a produção cultural. Dependente, sobretudo, do patrocínio do governo, o teatro baiano como um todo entra em paralisia, em 1984, com a administração de Olívia Barradas, na Fundação Cultural do Estado. Década difícil em que o Teatro Castro Alves esteve fechado e o Teatro Vila Velha ficou acéfalo, com a morte de seu primeiro líder, João Augusto Azevedo.

Não fosse a criação da Companhia de Teatro da Ufba, em 1981, com a volta do ator e diretor Harildo Déda após mestrado nos EUA, ‘aprender teatro fazendo teatro’ nestes anos seria ainda mais difícil. A Companhia monta a resistência na Escola de Teatro e estréia com Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello, trazendo espetáculos que ainda povoam a memória de artistas baianos, como Caixa de Sombras, de Michel Cristopher, A Caverna, de Walter Smetak, e Em Alto Mar, de Slawomir Mrozek.


Seu objetivo era encenar textos de qualidade dramatúrgica, sem evidente apelo comercial e com elevado nível técnico. Diferentemente d’A Barca, primeiro grupo da Escola, a Cia de Teatro da Ufba não é formada por elenco fixo, contando com atores convidados, diretores e alunos. Em 2006, a Companhia faz 25 anos, tendo produzido até o momento mais de 30 espetáculos. Ao lado de Déda, o diretor e cenógrafo Ewald Hackler é o responsável pelo maior número de trabalhos. Sua última montagem, o texto Arte, de Yasmina Reza, ganhou o Prêmio Braskem 2005, de melhor espetáculo, direção e ator, para Gideon Rosa, e vem sendo exibida em cidades do interior baiano. E a Escola exibe muitos outros prêmios em sua secretaria.

Diante deste fundamento prático, causa preocupação que o Teatro Martim Gonçalves esteja fechado para reformas há quase seis anos. Em paralelo à generalizada falta de verbas para a área, não é à toa o clima morno da cena teatral baiana dos últimos tempos. O trabalho dos alunos, sempre aberto e gratuito à comunidade, ficou restrito a uma sala experimental, interna à Escola, a Sala Cinco, que ainda promove o projeto Ato de 4. É inquietante que uma turma de alunos já tenha se formado sem passar pelo seu palco, verdadeiro coração teatral da cidade, e mostruário de novos talentos. Resta-nos a expectativa pela finalização das obras em curso, após a liberação de uma nova leva de recursos federais.

TEATRO É PROFISSÃO

Especial 50 anos
Escola de Teatro é marco da primeira onda de profissionalização do estado

A questão da profissionalização em Salvador se coloca muito mais no sentido técnico-formal. Isso acontece porque aqui não há mercado estável para a recepção da mão-de-obra capacitada, formada pela Escola de Teatro ou, mais recentemente, por outras faculdades e cursos profissionalizantes. Em resumo, são profissionais porque formados para esse exercício, mas não porque consigam sobreviver de sua arte, sendo que, ainda hoje, muitos atores e diretores precisam se revezar em outros empregos – sobretudo no ensino – para continuar atuando.

Posto isso, a Escola é marco na primeira onda de profissionalização do teatro, visto que é apenas após sua criação que se reconhece, na capital, o trabalho em teatro como um campo autônomo, profissional e artisticamente. O artista de teatro passa a ser reconhecido como um profissional como outro qualquer, que domina competências e habilidades particulares e que apresenta um serviço que deve ser remunerado, não sendo mais um diletante que vê na atividade um passatempo social. A Escola de Teatro fez do trabalho com arte, apesar das contingências, um sonho possível.

Há 50 anos, Martim Gonçalves fez ainda uma peculiar contribuição para a profissionalização do teatro na cidade, inserindo indubitavelmente a Escola de Teatro entre as unidades produtoras de peças para o circuito profissional. Ou melhor, criando este próprio circuito. Até hoje, as montagens de professores e alunos não ficam presas apenas ao ‘público universitário-acadêmico’ e ao ‘público formado por amigos-parentes’. Isso acontece mesmo com as montagens didáticas e encenações de final de curso, que sempre visam o contato com a comunidade.

Isso é o que diferencia a Escola de Teatro baiana das demais escolas brasileiras, já que suas produções estão, de certa maneira, inseridas no 'mercado possível’. Até a atualidade, o teatro baiano irá se debater com estas contradições na sua estrutura profissional de trabalho. Fora esta peculiaridade, a questão da colocação de artistas formados no mercado é um problema central nas escolas de teatro pelo país, não fugindo a Escola de Teatro da Bahia à regra.

É curioso quando lembramos que o venerável eixo Rio/SP da cena teatral também existe há pouco mais de 50 anos, quando da criação do Teatro Brasileiro de Comédias (TBC), em São Paulo, em 1948. Até então, esta cidade não tinha teatro profissional, mas apenas alguns grupos amadores, ficando a mercê dos espetáculos que viessem de outros países ou da produção carioca. Apenas oito anos depois do TBC, a Bahia também sonhou em ter o seu pólo de produção teatral.

A criação de uma Escola de Teatro, em 1956, na então Universidade da Bahia fazia parte de um programa arrojado empreendido pelo reitor Edgar Santos. Seu projeto para a superação do atraso baiano pregava a necessidade de convergência entre o poder econômico e cultural. Tal projeto de cultura, capitaneado pela Universidade, compreendia, entre outras iniciativas, a criação dos Seminários de Música (1954), com a vinda do maestro austríaco e ex-professor de Tom Jobim, Hans Joaquim Koellreutter, da criação da Escola de Dança (1956), que já nasce Contemporânea com a polonesa Yanka Rudzka, da incorporação da centenária Escola de Belas Artes e da criação da Escola de Teatro. Até hoje, a Universidade Federal da Bahia é a única no país que reúne as quatro expressões artísticas no ensino superior. Também foram criados, o Centro de Estudos Afro-Orientais (1960), com o português Agostinho da Silva e o Museu de Arte Moderna da Bahia, então Mamb (1960), com a italiana Lina Bo Bardi, que mais tarde faria o magnífico projeto do MAM-SP, na Avenida Paulista.

Já nos cinco primeiros anos da Escola contabilizamos diversas conquistas: a aquisição do Casarão-sede, a inauguração de um teatro em 1958, a criação da companhia A Barca (1956-1963), a contratação de professores nacionais e estrangeiros, a organização de dezenas de cursos extracurriculares e a efetivação de um raro convênio com a americana Fundação Rockfeller destinado para a instalação do primeiro sistema elétrico de iluminação para um teatro da cidade. Mais tarde esta parceria com os americanos seria criticada por intelectuais e artistas nacionalistas.

Mas é também na primeira administração que se encenam textos de autores nacionais (oito dos 24 montados), entre eles um baiano, Cachorro Dorme na Cinza, de Ecchio Reis. Este texto, juntamente com Graça e Desgraça na Casa do Engole Cobra, de Francisco Pereira da Silva, foram as primeiras iniciativas de encenação de cordel na capital. A literatura de cordel (adaptada dramaturgicamente ou não) será desenvolvida de forma mais sistemática, com a Sociedade Teatro dos Novos, primeira companhia profissional da cidade.

Nas décadas de 70 e 80 outros fatores vão influir nas condições de possibilidade de um mercado cultural no estado. A reforma universitária patrocinada pela Ditadura Militar, em 1969, orientada pelo espírito cientificista do acordo MEC/USAID, provoca uma queda na produção cultural da instituição, que a partir de então passa a se chamar Universidade Federal da Bahia. A débâcle é sentida especialmente na área de artes, letras e humanidades. As antes cultuadas escolas de Dança, Teatro e Música perdem a autonomia e são transformadas em departamentos da Escola de Música e Artes Cênicas. Somente, em 1988, elas voltariam a ser novamente independentes. A produção continua apesar das imposições da estrutura acadêmica serem muitas vezes insensíveis às sutilezas da criação artística.

Tais modificações acontecem em paralelo ao desenvolvimento da comunicação mediatizada, pedra-de-toque do Governo Militar. A implantação da lógica da Indústria Cultural, que submete a produção às possibilidades de lucro, gera impactos significativos sobre a dinâmica baiana e de outras regiões periféricas brasileiras. A principal delas é a concentração da produção no citado eixo Rio/SP, assim como sua centralização em algumas indústrias, entre estas a Rede Globo, transformando as emissoras locais em meras repetidoras de programação.

O impacto desta nova lógica, juntamente com o predomínio da censura militar, promove a migração ou o arrefecimento dos artistas locais. Contudo, tal conjuntura não impediu que a Escola de Teatro produzisse, em 1974, um grande sucesso popular, como Marylin Miranda, que levou mais de 15 mil pagantes ao Casarão do Canela. Seu diretor José Possi Neto retornaria à cidade, em 1996, para encenar o espetáculo de comemoração pelos 40 anos da unidade. É em A Casa de Eros, de Cleise Mendes, que Wagner Moura e Wladimir Brichta ganham repercussão na cena local.

A Bahia vive uma ‘segunda onda de profissionalização’ no final dos anos 80 e início dos 90, a partir de sucessos populares como A Bofetada, Recital da Novíssima Poesia Baiana e Oficina Condensada. O chamado boom do teatro baiano teve como traço principal o surgimento da figura do produtor, profissional fortalecido com o empreendimento empresarial na música baiana, que também promoveu a atualização tecnológica das casas de espetáculos. Neste movimento, não ficaram de fora professores e alunos da Escola de Teatro, como Paulo Dourado, Meran Vargens, Fernando Guerreiro, Frank Menezes e Rita Assemany, isso só para ficar nos espetáculos citados. Outros cursos profissionalizantes, como o Curso Livre da Ufba, criado em 1986, também iria fornecer novos atores e técnicos, fazendo uma primeira triagem entre os atores iniciantes.

Como outras expressões artísticas, o teatro dos anos 90 ganha visibilidade através da (re)criação do texto da baianidade, empreendimento promovido, sobretudo, com o retorno democrático do Carlismo ao poder. O ‘ser baiano’ se torna uma temática bastante explorada. Não é irrelevante neste período a mudança que se processa na estrutura das secretarias estaduais. Antes, a pasta de Cultura estava associada à Educação sendo, mais tarde, atrelada ao Turismo. E seu novo slogan passa a ser: Bahia, Terra da Cultura. Também é nos anos 90, que a produção cultural no Brasil tomará um novo fôlego com a entrada das leis de incentivo. Na Bahia, é criado o Fazcultura. Ainda há muito debate sobre os alcances reais e o funcionamento das leis, mas, de fato, a produção se mobilizou.

Em 1997, é criado o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da ET/Ufba, ainda hoje o único do Norte/Nordeste. Nestes nove anos, já foram formados 85 mestres e 20 doutores, tendo o PPGAC a máxima nota (seis) da Capes, entre os programas brasileiros. Através de intercâmbios com países como França, Itália, Alemanha, Argentina e Austrália, o PPGAC promove, mais uma vez, o intercâmbio de tradições e práticas do teatro mundial com a Escola.
Há visita constante de profissionais brasileiros e estrangeiros, que não raro ministram cursos na unidade, assim como o envio de novos alunos para estágios no exterior.

Promovendo, indubitavelmente, mais pesquisa e reflexão escrita sobre a área, talvez o PPGAC represente um novo passo para uma aguardada terceira onda de profissionalização: o da crítica. De todo modo, é preciso contornar desafios. Em primeiro lugar, o de estar atento para a incorporação destas pesquisas em encenações voltadas para a sociedade. E, segundo, para as necessidades de ampliação de seu espaço físico. Após firmar a permanência da Escola de Teatro e de seu palco no histórico Casarão do Canela (luta travada no ano passado), urge a criação de novas salas, ou pavilhão, para abrigar as inúmeras aulas teóricas da graduação e da pós, atualmente dispersas por várias unidades da Ufba.

TEATRO É MODERNO

Especial 50 anos
Terceiro – Escola promoveu o trabalho sistemático de técnicas e o ideário do teatro moderno

Desde a década de 50, a Escola de Teatro vem criando na cidade um espaço para a promoção sistemática do ideário e dos procedimentos do teatro moderno. É bom sabermos que sob a rubrica ‘teatro moderno’ se agrupam diferentes teorias e práticas. Artistas diversos, de diversas nacionalidades, fizeram aquilo que se convencionou chamar de “era moderna da história do teatro”, como o francês André Antoine, o russo Constantin Stanislavski e o alemão Bertolt Brecht. Porém, por mais contraditórias que sejam as correntes e as questões propostas, uma particularidade pulsa em todas elas: o reconhecimento da autonomia da arte do encenador.

Na Bahia o empreendimento ocorreu, sobretudo, através das inúmeras montagens que colocaram sob o olhar do diretor, os elementos que compõem o espetáculo teatral: o desempenho do ator, a leitura do texto (clássico ou moderno), a iluminação, o figurino, a sonoplastia e a cenografia. Na Escola da Ufba houve este exercício de técnicas e textos de diferentes épocas, gêneros e lugares, em consonância com ‘um olhar’, que era do encenador.

O teatro moderno nasce com a recusa da tradição declamatória, do estrelismo dos primeiros atores e das convenções óbvias da interpretação do século XIX, buscando ‘naturalidade e autenticidade’ nos palcos. Questionava-se o indisciplinado ‘ator-criador’, aquele que manipulava as falas e o texto ao seu bel prazer, que determinava as marcações e a distribuição de móveis de acordo com sua própria posição no cenário. O que leva alguns historiadores a afirmar que o ator, agora sob controle, passa a ficar à mercê da ‘ditadura’ do diretor.

Grandes dramaturgos como Henrik Ibsen, August Strindberg e Anton Tchecov se debruçaram sobre as questões do seu tempo, levando para o palco textos que fazem parte hoje do imenso legado modernista. O que nos leva a pensar em outro frutífero debate que atravessa o século moderno: a importância do texto dramático na encenação. Seria ele um elemento entre os demais ou a própria razão de ser do espetáculo?

No Brasil, a historiografia convencionou como marco do modernismo nos palcos a montagem de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, pelo grupo amador Os Comediantes, exibida em 1943, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Contudo, a encenação como arte autônoma será exercida sistematicamente apenas a partir da criação do Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo. A estética do TBC sobreviveu nas diversas companhias que se desdobraram dele, que souberam produzir um teatro cosmopolita de alta qualidade, atualizado e de bom gosto. Entretanto, para o crítico Yan Michalski, o que faltou a este teatro foi a capacidade de incorporar no seu trabalho a consciência de que ele estava sendo realizado no Brasil.O que pode ser demonstrado pela falta da dramaturgia nacional e da incorporação de outras camadas de espectadores além das tradicionais elites econômicas e culturais que já o freqüentavam.

Houve, nos primeiros anos da Escola de Teatro, uma série de críticas que retomavam às já realizadas ao TBC. Não são comentários que se façam sem algumas objeções. Já em 1957, a Escola de Teatro desenvolve série de atividades em ‘assistência ao jovem autor no Brasil’, como a criação de biblioteca, inclusive de textos de cordel, o curso de formação de autor e, a partir do II Seminário Internacional de Teatro, os cursos de playwriting com Stanley Richards. Além disso, oito textos de autores brasileiros são encenados apenas na primeira administração.

Daí que, para a percepção destes fundamentos, seja importante compreender melhor a atuação da Escola de Teatro na construção do rico cenário cultural que mobilizou Salvador em meados do século XX. Principalmente porque o idealizador de seu projeto, Martim Gonçalves, fez mais do que ‘encenar peças consagradas’ na província, então freqüente crítica à sua atuação. Reconhecemos, através de pesquisa direta aos jornais da época, que as atividades da Escola de Teatro promoveram, sim, um encontro entre o repertório erudito ocidental e a cultura popular nordestina.

Se Gonçalves apresenta à cidade, Albert Camus, Bertolt Brecht, Paul Claudel e Tennessee Williams, também publica artigos sobre teatro popular na imprensa local, monta o primeiro cordel na Bahia, forma um inédito museu de objetos do cotidiano e inusitada biblioteca com folhetos de cordel, isso além de organizar, ao lado da arquiteta italiana Lina Bo Bardi, a Exposição Bahia, na V Bienal de São Paulo.

Em 1961, ainda na cidade, mas já afastado do cargo após campanha da imprensa exigindo seu afastamento (encabeçada pelo animador teatral Adroaldo Ribeiro Costa, que publicava, nos anos 50, uma coluna neste jornal), Gonçalves presencia o questionamento de sua participação no evento paulista, através de um debochado artigo da página semanal Unidade, escrita pelos estudantes secundaristas e publicada também neste jornal. Contudo, sua autoria e concepção são atestadas por Lina Bardi, em carta-resposta, publicada na edição seguinte, em 11 de setembro de 1961.

A mostra da Bienal teria como fonte de inspiração uma outra singular exposição organizada por Gonçalves, na França, em 1957. O diretor da Escola de Teatro apresentou sob o título de Danças e Teatros Populares no Brasil um profuso material fotográfico e sonoro de forte viés etnocenológico, com exemplares do que chamou de teatro popular brasileiro: os jogos de capoeira e a Procissão do Bom Jesus dos Navegantes.

Segundo matéria publicada no Diário de Notícias, de 13 de abril de 1957, a exposição, com fotos de Marcel Gautherot e Sílvio Robatto (ambos apresentariam material na futura Bienal paulista), fazia parte do Festival do Teatro das Nações, com patrocínio do Centro Français du Théâtre e da Aliança Francesa. A matéria não deixa de ressaltar que a “Escola de Teatro pretende desenvolver o seu programa de ensino, formando novos técnicos para o teatro brasileiro e incentivando os autores dramáticos a entrarem em contato com as fontes de inspiração tradicional e popular”.

Como se não bastassem tais iniciativas, é também na Escola de Teatro que será reerguido o Rancho da Lua após 46 anos de inatividade. As músicas deste conjunto de origem popular, uma variante dos Ternos de Reis, serão mais tarde utilizadas por Gonçalves na encenação de Uma véspera de Reis na Bahia, de Arthur Azevedo. Também não causa surpresa que vejamos ecos das técnicas e debates propostos na Ópera dos Três Tostões e em Evangelho de Couro (texto escrito pelo poeta e jornalista Paulo Gil Soares a partir dos cursos de roteiro da Escola), na épica montagem de Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme marco do Cinema Novo, dirigido por Glauber Rocha e co-roteirizado por Paulo Gil.

ARTIGO DE HACKLER

Ewald Hackler
Diretor, cenógrafo e professor do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. PhD. em Dramaturgia, pela Universidade da Califórnia, Berkeley, 1983.

O que temos a festejar, então, nestes 50 anos? Martim Gonçalves empreendeu, na verdade, um projeto muito simples. De uma simplicidade notável. Havia, é claro, um projeto acadêmico na Escola de Teatro, contudo o movimento mais importante ocorreu em termos profissionais. Havia, naquela época, na década de 50, apenas um teatro feito por amadores, por autoditadas. Houve, sem dúvida, muita resistência por parte deles... Posso até dizer que Martim Gonçalves fracassou como pessoa. Não, não o projeto... Mas como pessoa, sim. Ele e Lina Bo Bardi, que depois foi para o exílio em São Paulo. Engraçado é que foi neste exílio em São Paulo que ela construiu um museu que até hoje a Bahia não tem.

Gonçalves morreu na amargura, no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro. Eu não o conheci. Eu cheguei na Bahia em 1969. O que posso dizer é que havia uma memória perturbada nesta época. E na perturbação você via exatamente os degraus da coisa. Quando eu via os professores, as pessoas falando, se falava menos de Martim Gonçalves do que da província. É isso que se desnuda. Numa resenha que eu publiquei na revista Repertório no. 1, sobre A Mochila do Mascate, de Gianni Ratto, eu falo sobre isso. Eu pensava: como era possível que um homem despertasse tanto ódio? Tantas opiniões contraditórias?

Então, o projeto de Gonçalves foi genial na sua simplicidade. Em primeiro lugar porque tinha que envolver a escola toda numa montagem. Todos os alunos, os professores... Todos. E, depois, porque operava com elencos mistos. Com atores avançados, alunos de interpretação e profissionais mesmo, convidados de fora. É essa a genial simplicidade do projeto. Porque é na prática teatral e na sua sala de aula que se aprende teatro. É praticando teatro! E aprender a fazer teatro é só no palco e junto com gente que é mais experiente que você. É uma prática milenar!

Você pode sentar e estudar a história do teatro, ler textos e tudo mais... Está claro... Agora, e não é um simples detalhe saber disso, aprender teatro na prática faz a enorme diferença da Escola de Teatro na Bahia. Em nenhum outro lugar do Brasil é assim. Posso dizer até no exterior também... Esse foi o legado que Martim Gonçalves deixou para a Escola. Mas, no bem e no mal, a Escola e o teatro que Gonçalves deixou, sobreviveram.

E sobreviveram graças à consistência do método! Apesar dos esforços contrários de alguns diretores da escola, de muitos alunos e não poucos docentes. A Escola de Teatro constituiu uma ameaça para os amadores, uma ameaça à mentalidade da província. Houve uma revolta dos analfabetos, exatamente como na Música. Eles venceram a batalha. Porque são eles hoje em dia que mandam. Não se tem apenas uma música axé, se tem também um teatro axé!

Acredito que a província não compreendeu até hoje a natureza única do modelo didático bem arquitetado por Martim Gonçalves... Ele colocou o público em contato com o melhor teatro que a dramaturgia universal poderia oferecer. Hoje quando lemos o roteiro nos jornais sobre teatro adulto e teatro infantil e nós vemos que o texto, a direção, a atuação simultaneamente, enfim, tudo é de fulano de tal, compreendemos que a utopia de Martim Gonçalves sofre séria ameaça. Não entendo porque Gil Santana nunca ganhou um prêmio do Braskem. Ora, porque não? Ele representa tanto a essência do teatro baiano atual.

O teatro baiano é sócio-psicodélico. Nele todos trabalham como crianças da TV. Só conseguem raciocinar entre um plim plim e outro. O que se assiste é a submissão total do teatro ao entretenimento. O público mais exigente fugiu às incontinências verbais desse teatro. O teatro atual na Bahia tem um problema muito simples de identidade. Ele fala demais, sem poesia e substância. É com isso que o teatro se autodenuncia. Esse teatro mostra apenas a realidade de sua encenação e não a encenação da realidade em que vivemos.

Depois do abandono da censura, o teatro ganhou liberdade de expressão, mas perdeu a SUA expressão. Sofre de um aleijão de imaginação. Isso é óbvio quando se observa a mudança do público, o tipo de platéia, o que ela quer ver... É um teatro que não consegue seduzir o público à razão, à reflexão. Sempre tem uma postura de: “a Bahia saúda o resto do mundo”. É um teatro que garante a vitória de sua estética confusa sobre a substância. Não há diálogo. Aqui se produz um grande silêncio com muito barulho. E o teatro chegou numa fase agora que não tem mais nada a perder.

Às vezes eu penso que a dramaturgia baiana dos últimos cem anos não vale duas páginas de Nelson Rodrigues, com sua poesia e seu rigor artístico. Bom, só não uso Shakespeare para não me indispor com nosso ministro da Cultura, que quer logo banir Shakespeare do teatro do Brasil.

Não, eu não quero generalizar. Mas todo mundo sabe que tudo isso não se limita à Bahia. É a situação do teatro no Brasil inteiro. Na verdade não quero xingar o teatro na Bahia... Mas mostrar como a Escola é necessária. E, para a Bahia, mais importante AGORA do que há 50 anos.

sexta-feira, junho 16, 2006

CAPA - Celeiro de Talentos

50 anos - Iniciativa Singular

50 anos - Fotos da Pagina Central

50 anos - Escola muda Cenário Teatral em Salvador

50 anos - Inovação, Ensino e Prática

50 anos - Marco na Profissionalização

50 anos - Um Novo Desafio

50 anos - Um Ideário Moderno

50 anos - Projeto Vitorioso (E. Hackler)